Algumas considerações sobre a relação entre a Filosofia e o Teatro...
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“O mundo atual pode ser reproduzido pelo teatro?”. Diante da questão proposta por Friedrich Dürrenmatt, em 1955, Bertolt Brecht considera que sua representação “se torna cada vez mais difícil”. Daí as tentativas feitas, por meio do teatro épico/dialético e do drama não-aristotélico, no sentido de “apreender o mundo”. Sua resposta à questão é enfática: o mundo pode ser representado pelo teatro “somente na medida em que compreendido como um mundo em transformação” (BRECHT, 1967, p. 282 e 283).
A resposta evidencia sua convicção na concepção de que o mundo pode ser representado na arte e, sobretudo, na idéia de que a arte representa algo. Tal convicção perpassa toda a sua produção teórica, composta por inúmeros textos produzidos entre 1920 e 1956, entre eles, vários de caráter fragmentário.
Nesse sentido, cabe perguntar: a que tipo de representação refere-se Brecht? Como é possível enfatizar uma representação comprometida com um mundo em transformação? Convém examinar o pretendido revigoramento das relações entre arte e realidade defendido pelo autor, levando em consideração as tensões provocadas por essa reivindicação e a manutenção da autonomia da arte.
O distanciamento, Verfremdung 1, é um elemento imprescindível na concepção de Brecht para estabelecer uma nova relação entre o palco e a platéia. Seu principal objetivo é possibilitar que o espectador estabeleça “uma atitude examinadora e crítica em face dos acontecimentos apresentados” (BRECHT, 1967, p. 160). O conceito permite ao dramaturgo a arte não seja considerada uma simples reprodução da realidade.
Segundo Brecht, o teatro deve contribuir para que o público “desenvolva um olhar de estranheza idêntico àquele que o grande Galileu contemplou um lustre oscilante. Ele ficou surpreso com o movimento de pêndulo, como se não o esperasse, não podendo compreender como aquilo estava ocorrendo; foi desta forma que aproximou-se de sua idéia a lei que regia aquele fenômeno. O teatro, com suas reproduções do convívio humano, tem de suscitar no público uma visão semelhante, tão difícil quanto fecunda. Tem de surpreender seu público, e chegar a isso por uma técnica que torne o que lhe é familiar em estranho” (BRECHT, 1967, p. 201).
Não parece casual a aproximação feita por Brecht entre o público de um novo teatro e Galileu. Ele destaca a capacidade de despertar no espectador uma nova atitude, marcada pelos sentimentos de estranhamento e surpresa. Essa posição aproxima Brecht da tradição filosófica que coloca o espanto e a admiração como elementos fundantes da atitude filosófica, portanto, da atitude crítica2 .
No artigo O Teatro Experimental, o autor define-o como um princípio capaz de “retirar” os fatos de seu caráter natural, fazendo “nascer em seu lugar espanto e curiosidade”. Esse recurso instaura a possibilidade de “historicizar” o teatro e, assim, mostrar ao espectador “os fatos e os personagens como fatos e personagens históricos, isto é, efêmeros” (1967, p. 137).
Entendido como um meio de intervenção sobre o cotidiano, o distanciamento permite a reflexão sobre os fatos habituais. Conforme escreve em Uma Nova Técnica de Representação, sua finalidade consiste em “chamar a atenção” sobre os acontecimentos corriqueiros (1967, p. 166). Assim, o espectador pode apreender, de maneira consciente, o que está oculto sob a aparente obviedade e, conseqüentemente, realizar o seu questionamento.
O fato de os homens estarem “acostumados” a considerar os acontecimentos como fatores naturais, leva-os a acreditar que não possam ser modificados. Contrariamente a essa visão, o teatro marcado pelo distanciamento desenvolve no espectador um “olhar de estranheza” sobre os fatos cotidianos. Esse “outro” olhar permite “desconfiar” daquilo com o que se está acostumado e torna possível o questionamento daquilo que parece inquestionável. O teatro precisa “surpreender seu público, e chegar a isso por uma técnica que torne o que lhe é familiar em estranho” (1967, p. 201). Rosenfeld analisa o distanciamento como “um novo movimento alienador”, necessário “para que nós mesmos e a nossa situação se tornem objetos do nosso juízo crítico” (1985, p. 151).
Em Pequeno Organon Para o Teatro, o autor afirma que esse conceito possui um “objeto social claro” ao permitir “o despojamento de fenômenos socialmente condicionados, de um libelo de familiaridade que os resguarda, hoje em dia, de qualquer intervenção”. Trata-se, portanto, de um meio cuja principal finalidade é possibilitar que o espectador estabeleça “uma atitude examinadora e crítica em face dos acontecimentos apresentados” (1967, p. 200 e 160).
O distanciamento caracteriza-se por um “afastamento” do homem em relação à realidade cuja finalidade é a compreensão mais profunda dela. Assim, uma “representação que cria o distanciamento, permite-nos reconhecer seu objeto, ao mesmo tempo que faz com que ele nos pareça alheio” (BRECHT, 1967, p. 200). Esse efeito dialético torna estranho o habitual e, dessa maneira, permite torná-lo mais conhecido. Segundo Dort, as relações entre palco e platéia reguladas pelo distanciamento produzem, ao mesmo tempo, “identificação e distanciamento, alienação e desalienação”. Processo que viabiliza a abertura de espaço para a participação do público, permitindo-lhe “definir afinal o sentido do que o palco representa” (DORT, 1977, p. 327).
O efeito de distanciamento, conhecido como V-Effekt, aplica-se a vários aspectos da atividade teatral: ao público, à dramaturgia, à atuação do ator, à direção e aos elementos cênicos. Ao utilizar o efeito de distanciamento, Brecht pretende combater o ilusionismo cênico e, assim, garantir um espaço mais propício para a reflexão crítica do espectador, uma vez que “a platéia vê como de fora a sua própria situação social, refletida no palco” (ROSENFELD, 1985, p. 154-155).
A partir de 1926, com a crescente preocupação em relação à transformação do teatro e, sobretudo, à formação de uma nova atitude do espectador, Brecht começa a desenvolver a concepção de teatro épico. Influenciado pelo diretor Erwin Piscator e pelo marxismo, os escritos de Brecht reclamam um teatro capaz de acompanhar as transformações sociais.
Em Notas Sobre “Mahagonny”, texto de 1930, Brecht destaca as principais diferenças entre a “forma dramática”, identificada com o teatro de tradição aristotélica, e a “forma épica”. O autor constata que, na forma dramática, a ênfase recai sobre a ação dos personagens, enquanto que o teatro épico propõe-se a acentuar a presença dos “elementos narrativos”. O destaque dado ao aspecto demonstrativo cumpre duas funções importantes na concepção brechtiana. Primeiramente, constitui-se como recurso indispensável para a refutação da ilusão cênica, ao reforçar no espectador a consciência de que está sempre diante de uma representação. Assim, o teatro épico abandona a pretensão de “dissimular que não é teatro” ou de “simular o acontecimento real” (1967, p. 143).
Ao mesmo tempo, os aspectos narrativos permitem dar uma ênfase maior ao “ambiente” em que os homens vivem, mostrando-o a partir de uma outra perspectiva. Enquanto a forma dramática expressa o contexto social apenas na medida em que ele permanece atrelado à ação do personagem, a forma épica propõe-se a ressaltar o “ambiente” a partir da concepção de que as relações sociais não são determinadas por “forças invisíveis” (1967, p. 95).
Dessa maneira, o “teatro historicizante” - como Brecht denomina o teatro épico - contrapõe-se à concepção de História presente no teatro tradicional, cuja finalidade principal consiste em “criar situações ‘universais’ que permitem ao Homem, com H maiúsculo, expressar-se; o homem de todos os tempos e de todas as raças” (1967, p. 112).
Para o teatro épico “todos os acontecimentos cotidianos são significativos, particulares e merecedores de indagação”. Ao teatro que concebe o “homem como um dado fixo”, o autor contrapõe um teatro capaz de mostrar o “homem como uma realidade em processo”. Ao invés de conceber o homem como ser imutável, o teatro épico evidencia que o “homem se transforma e pode transformar” (1967, p. 112 e 59).
O teatro épico pretende formar uma nova atitude do público de teatro, transformando-o em especialista. Para compreender o significado dessa expressão, pode-se considerar dois tipos de comparações feitas pelo autor. Em Notas Sobre a Ópera dos Três Vinténs, ele compara a atitude do espectador aos frequentadores especializados dos eventos esportivos3 . Em Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico, atribui aos espectadores a atitude de filósofos que não pretendem “apenas explicar o mundo, mas também, transformá-lo” (1967, p. 97).
A Dramática Dialética, texto fragmentário de 1931, propõe um teatro em que o espectador possa adotar “uma espécie de atitude científica”; a atitude de quem examina e não deseja “submeter-se passivamente a nenhum tipo de sugestão” (1973b, p. 56, v.1). Pode-se constatar que o público especialista4 caracteriza-se pela capacidade de perceber e apreender as condições sociais, assumindo uma postura crítica em relação a elas. Segundo Bornheim, o teatro épico incentiva o “ver concentrado” que “instaura o espírito crítico” (1992, p. 255).
Para desenvolver a consciência crítica, o teatro épico atribui um espaço importante à observação e ao posicionamento do espectador em relação ao que está vendo. Enquanto a forma dramática transporta-o para “dentro de alguma coisa”; a épica coloca-o “diante de alguma coisa” (BRECHT, 1967, p. 59).
No texto Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico, o autor compara novamente as duas atitudes, usualmente percebidas no público de teatro. Enquanto o espectador da forma dramática, ao assistir o espetáculo, declara: “Sim, eu também senti isso. - É assim que eu sou. - Sempre será assim. - O sofrimento desta pessoa me compunge porque não há saída para ela”; o espectador do teatro épico, constata: “Eu não teria pensado nisso. - Não se deve agir assim. - Isto é verdadeiramente extraordinário, é quase incrível. - Isto não pode continuar. - O sofrimento desta pessoa me compunge porque sem dúvida haveria uma saída para ela” (1967, p. 97).
Na confrontação feita por Brecht, pode-se constatar sua crítica à ênfase dada pela forma dramática ao processo de identificação entre espectador e personagem. Para o autor, tal procedimento é responsável pelo “enfraquecimento” da postura crítica do público em relação ao teatro e à sociedade. Sua pesquisa e tentativa de transformação do cenário teatral caminham no sentido de evitar que o público possa ser tratado como uma criança que “deseja gozar sensações bem determinadas”, tornando-se uma “massa intimidada, crédula, hipnotizada” (1967, p. 194-195).
A mudança de atitude do público implica em um exercício dialético, que deve ser incentivado pelo novo teatro. Como esclarece o autor no Diário de Trabalho (20.12.40), isso torna-se possível quando o teatro mostra o caráter contraditório da realidade e permite ao espectador estabelecer a passagem do “particular ao geral, do individual ao típico”. Enfim, a dialeticidade do ato de ver desenvolve-se quando ele consegue articular o presente, o passado e o futuro; quando pode perceber a “unicidade do incongruente, a descontinuidade do contínuo” (1977, p. 216, v. 1).
Nos últimos textos, as reflexões feitas por Brecht levam-no a reconsiderar o uso da expressão “teatro épico”. Em fragmento do seu Escritos Sobre Teatro, considera a designação épica “muito geral e indeterminada, quase formal” (1970, p. 195, v. 3). Sua pretensão é usar uma terminologia mais precisa, capaz de enfatizar principalmente as contradições presentes nas relações sociais. Contradições essas que não devem ser amenizadas, mas realçadas. Para tanto, propõe que a expressão “teatro épico” seja substituída por “teatro dialético”.
Como outros autores do início do século XX, Brecht procura respostas para a crise da atividade teatral e do mundo em que vive. Suas investigações surgem a partir da insatisfação em relação a uma tradição teatral que produz a ilusão cênica ao pretender transformar o palco na própria realidade. Nesse tipo de teatro, os espectadores limitam-se a aguardarem passivamente, em seus “locais escurecidos”, esperando por uma “feliz distração” que os faça esquecer as “dificuldades do dia a dia” (2000, p. 240).
Brecht aposta em um teatro “vívido, terreno” que possa manter-se próximo do cotidiano (2000, p. 235). Um teatro capaz de aproximar-se da realidade e, ao mesmo tempo, vislumbrar a sua superação. Trata-se, como afirma Marvin Carlson, de “uma nova concepção de drama, que enfatiza não a similitude, mas o maravilhoso e o surpreendente” (CARLSON, 1997, p. 370).
Texto de: Maristela Marasca
NOTAS
1 O termo Verfremdung é traduzido de várias maneiras para o português. Alguns autores preferem traduzi-lo como “distanciamento”; é o caso de Fernando Peixoto e Gerd Bornheim, para citar alguns exemplos. Outros, como Ingrid Koudela preferem utilizar o termo “estranhamento”; outros ainda admitem traduzi-lo como “alienação”. Esse texto utiliza o termo “distanciamento”, empregado na tradução de textos reunidos na obra Teatro Dialético, referida na bibliografia.
2 Cabe ressaltar que o autor não restringe a presença do distanciamento ao campo artístico. Trata-se de um conceito encontrado também na vida diária, na medida em que as pessoas são capazes de se surpreenderem com algo ou com uma situação comum, ou quando se perguntam sobre algo, ou ainda quando usam determinadas palavras ou expressões como “realmente” ou “para falar a verdade”. Dessa forma: “Aquilo que parece ser óbvio, é transformado de uma certa maneira em algo incompreensível mas isto só é feito para que ela se torne mais compreensível” (1967, p. 173-174).
3 Em alguns textos, Brecht compara o público do teatro aos freqüentadores das lutas de boxe: “O teatro como teatro deve adquirir essa fascinante realidade de um estádio de boxe. O melhor é mostrar, simplesmente, toda a maquinaria, os aparelhos...” (1973b, p. 42, v. 1).
4 Essa terminologia também aparece no texto A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), de Walter Benjamin, associado ao espectador de cinema. O autor constata certa semelhança entre o espectador de cinema e o de esporte, na condição de que ambos são “semi-especialistas”. Posteriormente, ao discutir as transformações que ocorrem na arte com os processos de reprodução técnica, aponta para a necessidade de reconhecer a transformação do público. O cinema, por exemplo, transforma “cada espectador em especialista”. O autor constata: “O público das salas escuras é indubitavelmente um examinador, mas um examinador que se distrai” (1990, p. 227 e 238).
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