Algumas considerações filosóficas sobre a Estética...
Temas relacionados à estética são discutidos pela Filosofia desde a Antigüidade clássica. A reflexão sobre o Belo (“Kállos”) e a arte (“Tékne”) está presente em Sócrates, Platão e Aristóteles. No início da modernidade as discussões estéticas voltam-se para os critérios que fundamentam o juízo de gosto – faculdade humana capaz de distinguir entre o belo e o feio.
Segundo Luc Ferry, a discussão sobre o belo sofre uma “mutação radical” na medida em que “o belo é ligado tão intimamente à subjetividade humana, que se define, no limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou pelos sentimentos que suscita em nós” (FERRY, 1994, p. 36).
Entretanto, a Estética enquanto disciplina filosófica surge somente em 1750, com a publicação da obra “Estética: a lógica da arte e do poema”, de Alexander Baumgarten. Nesta obra, o autor utiliza o termo Estética para designar a ciência que trata do belo. Para Baumgarten, assim como existe uma ciência, a Lógica, para conhecer as “coisas inteligíveis” (“noéta”); deve haver uma ciência que permita conhecer as “coisas sensíveis” (“aisthéta”). Estão instituídas as condições para o surgimento da Estética como “ciência do conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN, 1993, III, p. 95).
É com Emmanuel Kant que a estética consolida-se como uma modalidade autônoma da experiência humana. Na “Crítica da Faculdade de Julgar”, de 1790, Kant descreve os fundamentos do juízo de gosto, diferenciando-o das demais formas de juízo. Kant define o juízo de gosto como um juízo estético e subjetivo, que diz respeito ao sentimento de prazer ou desprazer causado no sujeito pelo objeto. Diante do belo, o homem sente um prazer desinteressado, ou seja, o belo apraz independentemente de todo interesse: independente da inclinação ou desejo do sujeito. O juízo de gosto também não pode ser considerado como um juízo de conhecimento, pois não é dirigido por conceito, mas pelo sentimento de prazer ou desprazer. Entretanto, a complacência na beleza não é privada. O juízo de gosto reivindica uma universalidade. Ele possui um caráter universal peculiar, isto é, possui uma universalidade subjetiva, que diz respeito ao sentimento do sujeito. Justamente porque esta complacência é independente de qualquer interesse pode ser estendida a qualquer um. Kant enfatiza que se alguém “toma algo por belo, então atribui a outros precisamente a mesma complacência: ele não julga simplesmente por si, mas por qualquer um e neste caso fala da beleza como se ela fosse propriedade das coisas” (KANT, 1995, p. 57).
O juízo de gosto, segundo Kant, não pode ser determinado pelo conceito de perfeição e de utilidade, pois como juízo estético, não pode ser fundado por conceitos ou por qualquer fim determinado. Ou seja, a experiência estética é marcada por uma finalidade intrínseca. O juízo de gosto é também um juízo necessário “exemplar”: é um juízo não deduzido de conceitos e que vale apenas de modo condicional. A necessidade no juízo de gosto pressupõe a existência de uma comunicabilidade universal do sentimento de prazer ou desprazer.
Hegel institui a Estética enquanto uma “ciência filosófica”, cujo objeto de estudo é “formado pelo domínio do belo e, com maior rigor, pelo domínio da arte” (HEGEL, 1988, p. 4). O filósofo relega o belo natural a uma condição inferior, pois está relacionado à existência necessária. Já o belo artístico atinge uma superioridade qualitativa, uma vez que provém da participação do espírito e, portanto, da verdade. O estudo da Estética deve começar pela idéia do belo - a idéia em si e para si – que não deve ser deduzida a partir dos objetos particulares. Assim, ressalta: “Nós começamos pelo belo enquanto tal. E esta idéia, que é una, ir-se-á diferenciando, particularizando, a partir de si própria, irá originando a variedade, a multiplicidade, as diferenças, as múltiplas e diversas formas e figuras da arte que, então, se vêm a apresentar como produções necessárias” (HEGEL, 1988, p. 10). Hegel enfatiza que o belo e a arte são uma forma de manifestação sensível do espírito. Através das manifestações artísticas, a consciência permite ao espírito reconhecer-se a si mesmo.
Contemporaneamente existe uma diversidade de abordagens no que se refere às questões estéticas. Segundo Benedito Nunes pode-se perceber duas grandes tendências da Estética. De um lado as correntes subjetivas que privilegiam a reflexão sobre aspectos, como: o prazer sensível, os sentimentos e as emoções. De outro, as tendências objetivas que focalizam os elementos materiais, as relações formais e as formas concretas no espaço e no tempo.
Para Adolfo Sánchez Vázquez, a Estética é a “ciência de um modo específico de apropriação da realidade” (VÁZQUEZ, 1999, p. 47). Trata-se de um modo marcado essencialmente pela experiência sensível. Entretanto, o universo estético não está restrito às considerações sobre o belo. Mesmo que as discussões sobre o belo tenham sido determinantes em vários momentos da história, é preciso ampliar a “esfera do estético” e considerar outras categorias estéticas importantes, como: o feio, o cômico, o trágico, o grotesco, o sublime. A discussão estética também não pode restringir-se ao estudo da arte. Mesmo que a arte seja considerada como um elemento indispensável para a reflexão estética, é preciso considerar que a relação estética também pode ocorrer em outras situações: diante da natureza, diante de obras artesanais ou industriais.
Texto de: Maristela Marasca
BIBLIOGRAFIA:
BAUMGARTEN, Alexander G. Estética: a lógica da arte e do poema, Vozes, Petrópolis – RJ, 1993.
BAYER, Raymond. Historia de la Estética, Fondo de Cultura Económica, México, 1993.
FERRY, Luc. Homo Aestheticus. A invenção do gosto na era democrática, Ensaio movimento de idéias/idéia em movimento, São Paulo – SP, 1994.
HEGEL, Georg W. Friedrich. Estética: a idéia e o ideal, Nova Cultural, São Paulo – SP, 1988, col. Os Pensadores.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo, Forense Universitária, Rio de Janeiro – RJ, 1995.
NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte, Ática, São Paulo – SP, 1999.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à Estética, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – RJ, 1999.
A relação entre a arte e a vida é uma questão
problemática e conturbada. De um lado, tem-se a necessidade de perceber aquilo
que é próprio da arte - que diz respeito a sua especificidade -; de outro, a
sua relação e integração com as outras atividades humanas. Esta linha tênue
balança de um lado a outro, constituindo-se no ponto de tensão/condição da
arte. Entretanto, esta problemática é eminentemente moderna.
Desde os primórdios da civilização, a “arte” está presente na vida humana. Ao longo de sua história, o homem produziu artefatos que hoje designamos como obras de arte. Entretanto, no período em que foram produzidos não eram feitos e apreciados enquanto tal. Em suas primeiras formas de manifestações a “arte” encontra-se ligada e antes, identificada, com os aspectos sociais de um determinado grupo.
O conceito de arte, tal como concebemos modernamente, relacionado a uma finalidade eminentemente estética, raramente aparece na história. Os artefatos produzidos eram julgados por finalidades ulteriores à estética. A “arte” constituía-se num “meio” para manifestação de certos valores: místicos, religiosos, pedagógicos ou utilitários. Apesar disso, Osborne afirma que é possível constatar a presença subliminar de algum senso estético mesmo nestas “produções” humanas. Ele está presente na ornamentação de utensílios e do próprio homem. Se o impulso estético não é inoperante, na maior parte da história a “função estética raro ou nunca se apresentava só e autônoma.” (OSBORNE, 1970, p. 30).
As primeiras “manifestações artísticas” da humanidade estão diluídas na vida social. É o que podemos constatar nos artefatos produzidos pelos homens pré-históricos, integrados aos rituais mágicos que permitiam ao homem enfrentar a hostilidade e a rudeza de um mundo regido por forças sobrenaturais. A pintura, o desenho ou a escultura são mais que representações: são a possibilidade de relacionamento entre o homem e o desconhecido. Assim, constatam-se inúmeras pinturas rupestres representando cenas de caçadas, onde os animais aparecem atravessados por flechas: “Representá-los era possuí-los, propiciar a sua caça... Utilizava-se a imagem para assegurar a morte dos animais difíceis de capturar, ou para proteger-se contra seus ataques.” (LOPERA, 1995, p.19).
Entre os gregos a “arte” era concebida como “Techne”, ou seja, como ofício que exige determinadas habilidades e conhecimentos técnicos para ser realizado. Desta maneira, era considerado como arte todo fazer humano que devesse submeter-se a determinadas regras. Este conceito amplo poderia abranger tanto a arte de esculpir ou de pintar, quanto a arte do sapateiro ou do carpinteiro.
A “arte grega” só era possível e aceitável enquanto inserida na vida social. Era apreciada como indústria humana que cumpre uma função social: “Não se escrevia poesia para ser lida em casa pelos poucos que porventura a apreciassem... Cantavam-se poesias em todas as reuniões sociais e em todas as cerimônias religiosas, e a poesia era um complemento essencial dos grandes certames atléticos”. (OSBORNE, 1970, p. 31).
A “arte” é julgada segundo o seu caráter educativo ou pela capacidade de cumprir a finalidade a que se propunha. Por isso, quando Platão afirma que a poesia e a pintura não teriam lugar na sua República, tem em vista a contribuição que estas podem representar para a sociedade. O que Platão condena não é a arte ou o artista em si, mas a influência que eles podem exercer na educação dos homens. O filósofo condena as formas imitativas de arte, dentre elas a pintura e a poesia, que reproduzem o mundo das sombras - caracterizado pela ilusão das aparências. O pintor ou escultor fazem uma espécie de cópia da cópia, afastando-se do verdadeiro conhecimento. O poeta exerce uma grande sedução natural ao revelar ilusões e ao acentuar as paixões humanas, que podem corromper o homem honesto. O poeta “instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor... a uma enorme distância da verdade”. (PLATÃO, 1987, p. 472).
Aristóteles começa o processo de diferenciação ao estabelecer o conhecimento técnico como o âmbito do contingente e ao propor a divisão deste em duas partes: a práxis, conhecimento sobre a ação humana que tem uma finalidade em si mesma; e a poiesis, ação humana que resulta na fabricação de um determinado produto. Em sua obra “Poética” estabelece a diferença entre a História e a Poesia. Enquanto o historiador tem o compromisso de relatar o que aconteceu - o fato particular -, o poeta narra o que poderia ter acontecido. Segundo Aristóteles, “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular”. (ARISTÓTELES, 1991, p. 209). Entretanto, a poesia é universal na medida em que cria uma conexão de fatos e ações a partir da verossimilhança e da necessidade.
Seguindo a tradição greco-romana, o período medieval adotou a distinção entre artes servis e artes liberais. As artes servis (mecânicas) eram consideradas inferiores porque estavam comprometidas com a matéria e o trabalho manual. As artes liberais, ao contrário, eram superiores porque não estavam sujeitas às coisas do corpo e possuíam uma ordenação racional. As artes servis só eram consideradas como belas quando cumprissem uma função didática: quando serviam como instrumento de educação moral e de difusão das “verdades da fé”.
A modernidade e com ela as considerações feitas por Kant sobre a Estética, criaram as condições para a construção da autonomia da arte, estabelecendo a sua especificidade. Kant estabelece o juízo de gosto como um juízo peculiar. Segundo Kant, o juízo de gosto é um juízo estético, referindo-se exclusivamente ao sentimento de prazer ou desprazer que o sujeito tem em relação ao objeto. Por isso, o juízo estético deve ser percebido como um juízo diferente do juízo de conhecimento, que se refere ao conceito do objeto. O juízo de gosto não implica ou sugere nenhuma forma de conhecimento. Desta maneira, Kant faz a crítica das estéticas racionalistas ao negar a possibilidade de estabelecer regras externas para julgar o belo. Pois, o belo caracteriza-se por um prazer imediato (sem interferência de nenhum conceito) e desinteressado. Ao contrário, quando “se julgam objetos simplesmente segundo conceitos, toda a representação da beleza é perdida”. (KANT, 1995, p. 60).
No século XVIII surgem as tendências românticas em luta contra os preceitos classicistas. Contra as regras estabelecidas, preferem a busca da originalidade e da livre expressão dos sentimentos. O poder da imaginação criadora passa a ser visto como a fonte da produção artística. Com o romantismo, aparece a distinção entre as “belas-artes” e as artes úteis ou industriais. Aos poucos, a arte começa a ser expulsa da estrutura integrada da sociedade. Constituindo-se enquanto área autônoma, a arte passou a ser julgada a partir de critérios estéticos. A modernidade nos possibilitou o questionamento sobre onde deve recair a preponderância: sobre a autonomia da arte ou sobre sua proximidade com o mundo. A relação entre arte e vida é o dilema do “artista moderno”, que se torna a condição de existência da própria arte.
Charles Baudelaire manifesta os primeiros indícios do modernismo, ligando a arte moderna ao efêmero e ao contingente: “O belo é constituído por um elemento eterno, invariável... e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão”. (BAUDELAIRE, 1996, p. 10). A arte deve libertar-se dos padrões clássicos e refletir a sua época. Deve expressar a vida moderna em suas características essenciais: as contradições, as misérias humanas e sociais, a efemeridade e a realidade cotidiana. A arte é o entrelaçamento entre a atualidade e o eterno.
Vida e arte são dois elementos que se entrelaçam, tornando-se inseparáveis. Em primeiro lugar, a arte está presente em qualquer atividade humana que precisa assumir uma determinada forma, uma forma bem sucedida. Neste sentido, em toda atividade humana “está presente um lado inventivo e inovador como primeira condição de toda realização.” (PAREYSON, 1989, p. 36).
Por outro lado, a arte exige que se estabeleça a sua especificidade. É preciso que ela encontre um significado que a diferencie das demais esferas para constituir-se enquanto tal. Segundo Luigi Pareyson, a arte possui uma formatividade peculiar, que não tem nenhum outro fim em vista a não ser a própria formatividade: “O artista não tem em mira uma obra que, para ser obra, deve ser também forma... mas uma obra que, presume e aceita valer só como forma.” (PAREYSON, 1989, p. 37).
Entretanto, a relação entre arte e vida entra em crise quando determinadas concepções absolutizam um dos dois aspectos, causando a negação da própria arte. Quando a arte absolutiza sua integração no mundo, o valor estético é submetido a outros valores. A autonomia da arte é desfeita e ela transforma-se num instrumento determinado por valores ulteriores, como os valores éticos, pedagógicos ou utilitários. Quando a arte reafirma uma autonomia absoluta, reivindicando um total isolamento do mundo e um confinamento em si mesma, ela também é negada. É o que ocorre com as tendências esteticistas da arte, cuja máxima é a afirmação da arte pela arte.
As vanguardas artísticas são, muitas vezes, criticadas porque na tentativa de aproximar arte e vida, acabaram provocando o acirramento da distância entre a arte moderna e o público. Analisando esta questão, Habermas constata o fracasso na tentativa de reaproximação feita pela arte surrealista. Segundo ele, o fracasso possui dois motivos: de um lado, os surrealistas tentaram romper com a autonomia da arte para conseguir emancipar a consciência de massa. Mas com isso, conseguiram apenas dispersar o conteúdo da arte. De outro lado, os surrealistas acreditaram, ingenuamente, que poderiam revolucionar a vida cotidiana somente através da arte. Esta transformação só pode ocorrer a partir da livre interação de “todas las esferas, cognoscitiva, moral-práctica y expresiva... una vida cotidiana racionalizada dificilmente podría salvarse del empobrecimiento cultural mediante la apertura de una sola esfera cultural...” (HABERMAS, 1986, p. 31).
Na arte pós-moderna a predominância recai sobre o efêmero, o descontínuo e o caótico. Os objetos cotidianos são incorporados à arte e adquirem valor artístico. Cria-se uma profunda indiferenciação entre arte e vida, que acaba por dissolver a arte na realidade: “Desestetizando-se, desdefinindo-se, tornando difícil saber-se o que é arte o que é realidade, ela tende ao niilismo, a zerar a própria arte.” (SANTOS, 1997, P. 38).
Se de um lado, o pós-modernismo pode constituir-se numa ameaça à condição de existência da arte enquanto tal; de outro lado, a arte contemporânea é atingida pela indústria cultural que, nas palavras de Robert Kurz, transforma a arte em mercadoria “para uso doméstico do homem capitalista”, fazendo com que abandone a sua condição de arte na medida em que “deixa de representar uma reflexão estética da sociedade e da relação humana com o mundo.” (KURZ, 1999).
Neste sentido, talvez possamos nos reportar a análise da indústria cultural feita por Walter Benjamin no texto “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, quando tenta detectar as transformações que a arte sofre na sociedade industrial. Entretanto, o grande mérito do autor é justamente não ter desqualificado estas obras simplesmente por serem passíveis de reprodução, como o fizeram seus contemporâneos. A reprodução técnica faz com que o “hic et nunc” (aqui e agora) seja abalado, atingindo o conceito de aura da obra de arte - elementos esses, que permitiam assegurar a autenticidade da obra de arte ao longo da tradição: “O hic et nunc do original constitui o que se chama sua autenticidade... A própria noção de autenticidade não tem sentido para uma reprodução, técnica ou não. Mas, diante da reprodução feita pela mão do homem, e considerada em princípio como falsa, o original conserva sua plena autoridade; isto não ocorre no que respeita à reprodução técnica.” (BENJAMIN, 1990, 212).
Benjamin constata que os critérios tradicionais não servem para julgar a novas formas de arte. Portanto, é preciso buscar novos critérios para julgá-las. Mesmo não explicitando estes novos critérios, o autor vê com discernimento a finalidade de uma nova arte diante de uma nova sociedade. A possibilidade de reprodução não condena a arte em si, ao contrário, permite duas possibilidades. De um lado ela pode estar a serviço do nazismo, ou seja, ser usada como forma de manipulação e domínio político, reforçando o culto ao ídolo. Mas esta é apenas uma das possibilidades. Por outro lado, a reprodução pode significar a politização da arte; pode contribuir para a democratização da cultura e para a emancipação da humanidade.
É fundamental para a arte que ela encontre o equilíbrio entre seu relacionamento com o mundo e a preservação de sua autonomia. É fundamental que a arte se estabeleça em sua especificidade, diferenciando-se de outros aspectos da produção humana. Por isso, é importante conseguir que a arte estabeleça por si mesma o que é arte. Por outro lado, é preciso buscar na arte uma forma de relação com o mundo onde ela possa comunicar-se, sair dela mesma, sem deixar de ser arte. Como ressalta Pareyson, “a arte se especifica com um ato que a insere no próprio coração da realidade (PAREYSON, 1989, p. 45).
Texto de: Maristela Marasca (1999)
BIBLIOGRAFIA:
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo : Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. São Paulo : Paz e Terra, 1996 (Coleção Leitura).
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica., in.: Teoria da Cultura de Massa. Seleção de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1990.
HABERMAS, Jürguen. La Modernidad, un Proyecto Incompleto., in.: La Posmodernidad. Seleção de Hal Foster. Barcelona : Editorial Kairós, 1986.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução Valério Rodhen e António Marques. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1995.
KURZ, Robert. O Fantasma da Arte., in.: Folha de São Paulo, 04/04/1999.
LOPERA, José Alvarez e outros. Pintura I: A Pré-História e o Mundo Antigo. Espanha : Ediciones del Prado, 1995.
OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte. São Paulo : Cultrix, 1970.
PAREYSON, Luigi. Os Problemas da Estética. São Paulo : Martins Fontes, 1989.
PLATÃO. A República. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
SANTOS, Jair F. O Que é Pós-Moderno. São Paulo : Editora Brasiliense, 1997. (Coleção Primeiros Passos).
A Estética, enquanto disciplina filosófica, surge somente em 1750, com a publicação da obra “Estética: a lógica da arte e do poema”, de Alexander Baumgarten. Nessa obra, o autor utiliza o termo Estética para designar a ciência que trata do belo. Para Baumgarten, assim como existe uma ciência, a Lógica para conhecer as “coisas inteligíveis” (“noéta”), deve haver uma ciência que permita conhecer as “coisas sensíveis” (“aisthéta”). Assim, estão instituídas as condições para o surgimento da Estética como “ciência do conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN, 1993, III, p. 95).
Entretanto, temas relacionados à estética são discutidos pela Filosofia desde a Antiguidade clássica. A reflexão sobre o Belo (“Kállos”) e a arte (“Tékne”) está presente em Sócrates, Platão e Aristóteles. No início da modernidade, as discussões estéticas voltam-se para os critérios que fundamentam o juízo de gosto – faculdade humana capaz de distinguir entre o belo e o feio. Segundo Luc Ferry, a discussão sobre o belo sofre uma “mutação radical” na medida em que “o belo é ligado tão intimamente à subjetividade humana, que se define, no limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou pelos sentimentos que suscita em nós” (FERRY, 1994, p. 36).
Adolfo Vázquez destaca que a estética é uma experiência humana específica, que se caracteriza pela apropriação eminentemente sensível da realidade. O autor sustenta a necessidade de ampliar a “esfera do estético” incorporando as discussões de outros aspectos, como o feio, o cômico, o trágico, o grotesco e o sublime.
As reflexões sobre o belo, na Estética, são consideradas predominantes em diversos períodos históricos. Mas, à sombra desse conceito um vasto universo permanece latente. Revela sua existência física apesar da resistência em tratá-lo teoricamente. O feio sempre ocupou um extenso espaço na existência real e artística de todos os tempos, mesmo sendo combatido ou negado. Apesar disso, é inegável a dificuldade de abordar teoricamente o conceito. Por séculos, o conceito é mencionado de um modo rápido, para designar a antítese do belo.
Umberto Eco sustenta que o feio não pode ser definido como o contrário do belo. O autor analisa uma das primeiras tentativas de abordar o tema, feita por Karl Rosenkrantz na “Estética do Feio”, em 1853. Para Rosenkrantz, o feio está presente na natureza, na ordem espiritual e na arte e pode ser compreendido como:
Segundo Eco, a análise feita por Rosenkrantz mostra que o feio deve ser considerado como um conceito mais rico e complexo do que tradicionalmente vem sendo tratado. A partir disso, Eco propõe abordar a questão a partir de uma história da feiúra que considere três fenômenos diferentes: o feio em si, o feio formal e a representação artística do feio.[...]a ausência de forma, a assimetria, a desarmonia, o desfiguramento e a deformação (o mesquinho, o débil, o vil, o banal, o casual e o arbitrário, o tosco), as várias formas de repugnante (o desajeitado, o morto e o vazio, o horrendo, o insosso, o nauseabundo, o criminoso, o espectral, o demoníaco, o feiticeiresco, o satânico)... (ECO, 2007, p. 16).
Já Adolfo Vázquez chama a atenção para a dificuldade histórica de admitir a dimensão estética do feio. O autor destaca a tendência, em várias épocas, de associar o feio a valores negativos de áreas como a moral, o conhecimento cognitivo e a prática. É notória a presença de uma mentalidade que associa o feio ao mal em diversas culturas. Também é possível perceber a identificação entre o feio e o falso (não verdadeiro) e entre o feio e o inútil. Para se contrapor a vinculação com valores negativos de outras dimensões da experiência humana, o autor sustenta a necessidade de reconhecimento da dimensão estética do feio:
Para o autor, a relação entre o sujeito e o feio não pode ser considerada como uma experiência da ordem do indiferente. Ao contrário, essa relação provoca uma série de reações sensíveis no sujeito. O fato de o feio ocorrer numa esfera eminentemente sensível justifica sua consideração como uma categoria estética:O feio ocorre em um objeto que por sua forma é percebido esteticamente, ainda que se note – sobretudo quando se trata de objetos reais – a ausência ou negação da beleza. Mas como acontece com outras qualidades estéticas, mesmo que se trate de uma experiência singular que vive um sujeito em determinada situação estética, o feio só ocorre historicamente e, com o fluir histórico, muda o seu conteúdo. Nem sempre o que foi considerado feio em uma época sobrevive como tal em outras. (VÁZQUEZ, 1999, p. 212)
O sujeito reage de modo diverso diante do feio real e do feio produzido pela arte. Mesmo assim, trata-se de reações estéticas. Diante de uma situação real, o feio normalmente produz repulsa, desagrado e um desejo de afastamento. Ao contemplar o feio “reproduzido” na arte, o sujeito experimenta um certo tipo de prazer. Tomando como exemplo o Boi Esfolado de Rembrant, Vázquez esclarece a distinção feita:O feio, consequentemente, não é sinônimo de não-estético ou de indiferente (ou inestético) a partir do ponto de vista estético... O feio ocorre na esfera do sensível (da aisthesis) e não de um estado de anestesia (no sentido original de carente de sensibilidade). Como todo estético, ocorre em um objeto concreto-sensível e na experiência de um sujeito ao percebê-lo sensivelmente. (VÁZQUEZ, 1999, p. 212)
As relações do sujeito com o feio precisam ser compreendidas nas transformações do processo histórico. Tomando como referência o período medieval, percebe-se que a presença do feio é justificada por diversos autores como manifestação da precariedade e decadência da existência terrena. Se o mundo cristão é essencialmente belo e bom pelo fato de ser uma criação divina, a existência do feio é justificada a partir de sua identificação com o mal.Certamente, o boi esfolado real, ao ser contemplado, só pode produzir um efeito negativo. Todavia, ao ser representado, esse objeto ingrato, ignóbil, se transformou, graças à forma sensível que o pintor concedeu à matéria, graças a seus efeitos de luz e a sua cor carnosa, em um objeto grato e nobre que nos apraz contemplar. (VÁZQUEZ, 1999, p. 227)
Santo Agostinho, ao investigar as causas do mal, afirma que ele não existe em substância, mas sim por uma “perversão da vontade desviada da substância suprema” (AGOSTINHO, 1996, p.190). O mundo é concebido como um todo, constituído por corpos inanimados, seres vivos sem razão e criaturas espirituais - seguindo uma escala hierárquica. Apesar dessa ordem estabelecida, à qual é preciso se conformar, o homem deve aproximar-se da perfeição divina, mesmo reconhecendo que esta seja inatingível em toda sua extensão.
Essa dialética ascendente do espírito humano apoia-se na concepção de beleza. A beleza presente no universo físico é considerada uma decorrência da criação divina. Por isso, é preciso reconhecer que, acima da beleza física, existe a beleza espiritual, fonte criadora de toda beleza. A verdadeira beleza transcende a esfera sensual; pertence apenas a Deus e pode ser apreendida pela intuição intelectual ou intuição mística. Manifesta-se, sobretudo, na harmonia matemática e na proporção.
O teólogo critica os que se restringem a apreciar a beleza natural e reprova o encanto sensual provocado por algumas formas artísticas. Nas “Confissões”, escreve sobre seu arrependimento em relação ao prazer que sentiu durante a juventude nos espetáculos teatrais. Recrimina-se por sentir compaixão diante das dores e sofrimentos dos atores - compaixão por “assuntos fictícios e cênicos”:
Em sua obra, o “esplendor da verdade”, o bem, o belo e a criação divina aparecem como elementos indissociáveis. Por outro lado, a existência do mal e do feio são concebidos como formas de corrupção, de desvirtuamente da ordem perfeita e harmônica:Mas eu, miserável, gostava então de me condoer, e buscava motivos de dor. Só me agradava e atraía com veemência a ação do ator quando, num infortúnio alheio, fictício e cômico, me borbulhavam nos olhos as lágrimas... Disto provinha o meu afeto pelas emoções dolorosas, só por aquelas que me atingiam profundamente, pois não gostava de sofrer com as mesmas cenas em que a vista se deleitava. Comprazia-me com aquelas coisas que, ouvidas e fingidas, me tocavam na superfície da alma. Mas, como acontece quando remexemos (uma ferida) com as unhas, este contato provocava em mim a inflamação do tumor, da podridão e o pus repelente. (AGOSTINHO, 1996, p.81-82)
Para Umberto Eco, é a ideia de “pankalia” (beleza de todo universo) que domina as discussões medievais. Isso, entretanto, não elimina a presença do feio nesse período; ao contrário, abre espaço para sua representação em temas como o sofrimento de Cristo, a inevitabilidade da morte e as tentações do diabo e do inferno. Ressalta Eco:Em absoluto, o mal não existe nem para Vós nem para vossas criaturas, pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que desmanche a ordem que lhes estabelecestes. Mas porque, em algumas das suas partes, certos elementos não se harmonizam com os outros, são considerados maus. Mas estes coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e bons em si mesmos... (AGOSTINHO, 1996, p. 188)
No século XII, São Bernardo escreve em “Apologia ad Guillelmum”, sobre a presença do feio nos espaços religiosos. O autor questiona a potencialidade de sedução exercida por tais elementos, capazes de distrair os fiéis de sua atividade fundamental; a oração. Entre os ornamentos citados, estão figuras consideradas estranhas, disformes e monstruosas.É na esteira agostiniana que reencontraremos no pensamento escolástico vários exemplos da justificação do feio no quadro da beleza total do universo, onde também a deformidade e o mal adquirem o mesmo valor, no qual no claro-escuro de uma imagem, na proporção entre luz e sombra, se manifesta a harmonia do conjunto. (ECO, 2007, p. 46).
No período medieval, não há uma distinção clara entre a beleza e a utilidade ou a beleza e a bondade. O feio, por sua vez, encontra espaço na arte, ao ser representado com uma finalidade didática. Ao mesmo tempo em que deve deleitar, a arte deve “servir” como instrumento de divulgação dos princípios cristãos:De resto, para que serve, nos claustros, onde os frades lêem o Ofício, aquela ridícula monstruosidade, aquela espécie de estranha formosidade disforme e disformidade formosa? O que estão ali a fazer os imundos símios? Ou os ferozes leões? Ou os monstruosos centauros? Ou os semi-homens? Ou os tigres manchados? Ou os soldados na batalha? Ou os caçadores com trombetas? (...) Enfim, por todo lado aparece uma estranha e grande variedade de formas heterogêneas, para que se tenha mais prazer em ler os mármores do que os códigos, para que se ocupe o dia inteiro a admirar, uma a uma, estas imagens em vez de meditar na lei de Deus. Oh Senhor, já que não nos envergonhamos destas criancices, porque não lamentamos, ao menos, os dispêndios? (apud. ECO, 1989, p. 18.
Os mesmos autores eclesiásticos que celebram a beleza da arte sacra insistem, por outro lado, no seu fim didático; o objetivo de Suger é o que foi sancionado pelo sínodo de Arras em 1025, para o qual o que os humildes não podiam apreender através da escrita devia ser-lhes ensinado através das figuras; o fim da pintura, diz Honório de Autun, como bom enciclopedista que reflete a sensibilidade dos seus tempos, é tripla: serve, antes de mais, para tornar bela a casa de Deus (ut domus tali decore ornetur), para chamar à memória a vida dos santos e, finalmente, para o deleite dos incultos, dado que a pintura é a literatura dos leigos... (ECO, 1989, P. 27)
Texto de: Maristela Marasca
BIBLIOGRAFIA:
AGOSTINHO. Confissões, Nova Cultural, Col. Os Pensadores, São Paulo – SP, 1996.
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RELA, Walter. El Teatro en Brasil, Paraguay, Argentina: Siglos XVI-XVIII, Universidad Católica del Uruguay, Montevidéu, 1990.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à Estética, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – RJ, 1999.
O uso de formas artísticas com finalidade didática aparece nas tentativas de evangelização feitas pela Companhia de Jesus nos territórios luso-hispânicos. Tanto na Província do Paraguai quanto na Província do Brasil, as Reduções indígenas eram dirigidas pelos jesuítas que organizavam o trabalho, o processo de evangelização e a ordem econômica. As oficinas de carpintaria e de escultores produziam as ferramentas necessárias para o trabalho, instrumentos musicais e esculturas.
Um dos meios de evangelização preferidos pelos jesuítas era o teatro. O teatro jesuítico incorporou alguns elementos dos rituais indígenas primitivos, como é o caso da música, da dança e do canto cerimonial.
Um dos meios de evangelização preferidos pelos jesuítas era o teatro. O teatro jesuítico incorporou alguns elementos dos rituais indígenas primitivos, como é o caso da música, da dança e do canto cerimonial.
As primeiras formas de dramatização, criadas sob a forma de alegorias, eram utilizadas para marcar celebrações e festividades do calendários cristão:
Espetáculos com propósitos evangelizadores também eram realizados nas cidades. Eram destinados aos colonos, mamelucos e indígenas cristianizados e representados nos pórticos das igrejas ou em palcos especialmente feitos para sua realização. Um exemplo disso, é a obra de Padre Anchieta que intercala alegorias e diálogos correntes para despertar o interesse do espectador em relação aos ensinamentos do Evangelho. Povoados por anjos e demônios, seu enredo cumpre a finalidade de expor aos espectadores a doutrina cristã. Analisando a obra de Anchieta, Monsenhor Guilherme Schubert ressalta a presença dessas figuras:El camino estaba abierto para que dentro de un recitado local y temporal, se incorporasen (sin violencia) sencillas alegorías como virtud, salvación eterna, y los principales fundamentos de la Iglesia, como Nuestro Señor, la Virgen María, Santos y Apóstoles, que fueron consolidando su presencia en imágenes exhibidas al pueblo, en las celebraciones y festividades de aldeas cristianizadas. (RELA, 1990, p. 112).
Em seguida, analisa a representação do bem e do mal na obra de Anchieta. Enquanto o mal e o feio são relacionados aos elementos pagãos da cultura indígena, o bem e o belo só podem ser conquistados pela salvação cristã:Hay discusiones entre demonios y ángeles, oportunidad para que estos expongan la doctrina cristiana. Los Santos cristianos aparecen con trajes vistosos e multicolores. De esta forma, a diferencia del teatro europeo de época, en los Autos predominan figuras concretas: Nuestra Señora, Angeles y Santos, pero mucho menos las alegorías, como Amor y Temor de Dios, la ciudad de la Victoria, y la Ingratitud. (apud. RELA, 1990, p. 125).
Adolfo Vázquez aponta para uma vinculação intrínseca entre o belo e o feio no período medieval. As duas categorias são consideradas a partir de uma relação de subordinação, na medida em que o feio só é admitido quando reforça a ideia de oposição ao belo e para servir à exteriorização de uma mentalidade predominante na época:Los demonios, con nombres indígenas traen a sus víctimas amarradas con cuerda usada para los sacrificios humanos, y hay referencia al canibalismo indio. Hay luchas entre Angeles e Demonios, y el Angel de la aldea asegura en su mano el garrote, mientras un demonio dispara un arcabuz en plena escena. Pero los Angeles o San Mauricio, vencen y mandan a los demonios al ‘infierno’. Y cuando uno de ellos se quiere resistir, tiene la cabeza partida com un tacapé (otro instrumento usado en el sacrificio pagano),¡ argumento muy convincente para los indios! (apud. RELA, 1990, p. 125).
Na modernidade, a discussão sobre o feio segue uma nova direção em meio à polêmica travada entre os representantes da estética clássica e da estética romântica. O Romantismo rompe com princípios vigentes que estabeleciam regras para a criação artística. Victor Hugo, no “Prefácio a Cromwell” (1827), afirma que a arte moderna deve ser orientada pelo princípio de liberdade e demonstra sua rebeldia em relação a qualquer tentativa de regrar sua produção:O feio existe certamente na vida real e entra na arte e na literatura para mostrar que o belo é apenas relativo, precário, já que só a beleza divina é absoluta, plena e eterna. E o feio, ao ser representado artisticamente, recorda a transitoriedade do belo, associada ao pecado, à enfermidade, à decrepitude e à morte. Em suma, o feio neste mundo terreno é o limite do belo... (VÁZQUEZ, 1999, p. 219)
Inspirado pelo “espírito de melancolia cristã”, o autor defende uma nova poesia que mostre outras facetas além do belo, como o feio e o grotesco. Está aberta uma nova perspectiva, que sustenta teoricamente a representação do feio na arte e na literatura. Hugo afirma:[...]Usemos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sistemas. Deitemos abaixo esse velho estuque que esconde a fachada da arte! Não há regras, nem modelos; ou melhor, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que planam sobre toda arte no geral, e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições da existência próprias a cada assunto..” ( HUGO, 2004, p. 306)
Para Umberto Eco, Victor Hugo faz uma “apaixonada exaltação romântica do feio”, desconstruindo a convicção do belo como ideia predominante na estética. O feio não aparece mais apenas como contraponto ao belo, mas como categoria estética autônoma:[...] a Musa Moderna verá as coisas com um olhar mais elevado e mais vasto. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe aí ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz..” (HUGO, 2004, p. 305)
Rompendo com a rigidez da estética clássica que preconiza a “pureza” dos gêneros, Victor Hugo propõe a mistura de elementos trágicos e cômicos, provocando um “terremoto” na criação poética. Inspirado pela natureza, o poeta moderno deve livrar-se das convenções estabelecidas pela tradição:O feio que Hugo vê como típico da nova estética é o grotesco (‘uma coisa disforme, horrível, repelente, transportada com verdade e poesia para o domínio da arte’), a mais rica das fontes que a natureza poderia oferecer à criação artística... Mas em Hugo o grotesco transforma-se na categoria que (embora ele fale de fenômenos artísticos que se estendem ao longo de dezenas de séculos) explica, anuncia e, em parte, promove uma galeria de personagens que, entre o final do século XVIII e os nossos dias, parecem marcados por uma satânica ou patética ausência de beleza.. (ECO, 2007, p. 280).
Dessa maneira, a poesia dramática deve ser uma espécie de espelho da natureza. Entretanto, mais do que ser “fiel” à natureza, o poeta deve ser capaz de criar um “espelho de concentração”, no qual aspectos diversos da realidade estejam presentes:Por-se-á a fazer como a natureza, a misturar nas suas criações sem portanto as confundir, a sombra com a luz, o grotesco com o sublime, noutras palavras, o corpo com a alma, a besta com o espírito... (HUGO, 2004, p. 305)
Na arte moderna, o feio aparece não mais como subterfúgio para finalidades didáticas ou para ser convertido em beleza. O feio surge, nas obras, enquanto tal, chamando atenção para aspectos usualmente desconsiderados pela arte acadêmica. Vázquez destaca essa concepção do feio nas produções de Velázquez, Rembrant e Ribera:O teatro é um ponto de óptica. Tudo o que existe no mundo, na história, na vida, no homem, tudo deve e pode refletir-se aí, mas sob a varinha mágica da arte. A arte folheia os séculos, folheia a natureza, interroga as crônicas, ensaia-se a reproduzir a realidade dos fatos, sobretudo as dos costumes e dos caracteres... ( HUGO, 2004, p. 309)
A arte de vanguarda, no início do século XX, e as manifestações artísticas contemporâneas consagraram o feio como uma categoria estética autônoma. Na estética, novos espaços de discussão sobre o tema se estabelecem. O questionamento filosófico sobre o significado do feio para a existência humana e histórica afirma-se como condição indispensável para compreender a experiência estética.O feio como tal, com sua realidade própria, está aí na pintura deles para expressar certa relação do homem com o mundo: uma relação tensa, purulenta ou desgarrada que não pode ser expressa com a serenidade e o equilíbrio emocional do belo. O feio, portanto, não pode deixar patente ante nossos olhos essa relação embelezando-se, ou seja, negando-se a si mesmo, deixando de ser propriamente feio... (VÁZQUEZ, 1999, p. 222)
Ao descrever uma personagem em “Um Cavalo de Raça”, Baudelaire afirma: “Ela é muito feia. Mas é deliciosa!” O poeta parece insinuar o caminho para compreendermos melhor as diversas facetas do feio, desvinculando-o de sua óbvia associação à negatividade. É um convite para vê-lo com outros olhos, aproximando-o da ironia, da criticidade, do prazer e do lúdico.
Texto de: Maristela Marasca
BIBLIOGRAFIA:
AGOSTINHO. Confissões, Nova Cultural, Col. Os Pensadores, São Paulo – SP, 1996.
BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa, Imago, Rio de Janeiro – RS, 1995.
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RELA, Walter. El Teatro en Brasil, Paraguay, Argentina: Siglos XVI-XVIII, Universidad Católica del Uruguay, Montevidéu, 1990.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à Estética, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – RJ, 1999.
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