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Os escritos de Bertolt Brecht mostram sua preocupação com a
transformação do teatro produzido em sua época e a busca de um novo espaço de
atuação para o público. Os conceitos de distanciamento e Teatro Épico/Dialético
foram tentativas feitas pelo autor para propor novas relações do teatro com a
sociedade. É nesse contexto que aparecem as tematizações sobre a peça didática,
Lehrstück.
Em 1930, ao escrever Comentários
ao “Vôo Sobre o Oceano”, Brecht discute a peça didática como experimento
que permite o exercício do atuante e cujo objetivo principal é a aprendizagem:
“É um objeto de ensino e divide-se em
duas partes. Uma parte (as canções dos elementos, os coros, os ruídos de água e
dos motores, etc.) tem a missão de possibilitar o exercício, quer dizer,
introduzi-lo e interrompê-lo, coisa que é preferível realizar com um aparelho.
A segunda parte, a pedagógica (a parte do vôo), é o texto do exercício: quem
exercita é o ouvinte de uma parte do texto e o locutor da outra. Dessa maneira,
resulta uma cooperação entre o aparelho e o ouvinte, na qual importa mais a
precisão que a expressão” (BRECHT, 1973,
p. 85).
Conforme Ingrid Koudela, a fase didática do autor possui um “caráter experimental”, cuja principal preocupação consiste em “traduzir os conhecimentos adquiridos, principalmente a dialética marxista, em formas dramáticas”1 (KOUDELA, 1991, p. 10).
Pode-se perceber que o interesse do autor desloca-se da questão formação do público para a aprendizagem dos participantes do “exercício”. Entretanto, a necessidade de modificar as “engrenagens” sociais ainda está presente. Brecht está preocupado com o papel desempenhado por uma das principais “engrenagens” culturais de sua época: o rádio. Ele constata que a “concentração dos meios mecânicos, assim como a especialização crescente na educação... requerem uma espécie de rebelião por parte do ouvinte, sua ativação e sua reabilitação como produtor” (BRECHT, 1973, p.86).
O autor critica, sobretudo, o predomínio de “programas de caráter culinário” e da “postura puramente decorativa” no rádio. Propõe sua transformação em “aparato de comunicação” e instrumento que serve à “vida pública”. Trata-se pois, de um meio que pode tornar possível o intercâmbio com o ouvinte, cumprindo uma finalidade pedagógica: “A missão formal da radiodifusão é dar a essas tentativas instrutivas um caráter interessante, isto é, fazer interessantes os interesses. Poderia, inclusive, dar uma forma artística a uma arte, especialmente àquela destinada à juventude. Apoiariam esse desejo de que o rádio pudesse dar forma artística às instrutivas aspirações da arte moderna que querem dar à arte um caráter didático” (BRECHT, 1973, p. 90-91).
A experiência das peças didáticas é discutida por Brecht em outros textos teóricos, em geral de caráter fragmentário, o que dificulta sua tematização. Em alguns desses textos, o dramaturgo afirma que a peça didática foi concebida sem o público, para que o participante pudesse atuar para si mesmo, e assim, participar de um processo de aprendizagem social: “Trabalhávamos sem platéia; os atuantes atuavam para si mesmos. Formávamos ensembles com operários, que nunca haviam pisado num palco e artistas altamente qualificados, e diante de toda diversidade de estilos, nenhum elemento da plateia podia contestar a unidade do que era apresentado. (...) O único princípio que nunca ferimos foi o de submeter todos os princípios à tarefa social, que tínhamos por objetivo cumprir em toda obra” (BRECHT, apud. Koudela, 1991, p. 9).
Em 1937, no texto Para Uma Teoria da Peça Didática, o autor enfatiza, mais uma vez, que o objetivo principal da peça didática é a aprendizagem do atuante, relegando a questão do público a uma instância secundária ou, até mesmo, abolindo-a: “A peça didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador. Em princípio, não há necessidade de espectadores, mas eles podem ser utilizados. A peça didática baseia-se na expectativa de que o atuante possa ser influenciado socialmente, levando a cabo determinadas formas de agir, assumindo determinadas posturas, reproduzindo determinadas falas” (BRECHT, apud. Koudela, 1991, p. 16).
Ao comentar uma de suas peças didáticas mais polêmicas, A Decisão, afirma que ela não foi escrita para leitores ou para uma plateia de “contempladores”. Trata-se de um jogo em grupo, no qual todos são atuantes e observadores, ao mesmo tempo: “Ela foi escrita não para um público de leitores, nem para o público de espectadores, mas exclusivamente para alguns jovens que queiram se dar ao trabalho de estudá-la. Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir, sucessivamente, o lugar do acusado, dos acusadores, das testemunhas, dos juizes. Nestas condições, cada um deles irá submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a noção - a noção prática do que é a dialética” (BRECHT, apud, Koudela, 1991, p. 66).
Destinadas a um determinado público ou não, as peças didáticas possuem como aspecto fundamental a preocupação com a aprendizagem. Ela ocorre a partir do confronto entre o jogo teatral desenvolvido pelos atuantes e o texto escrito. Reiner Steinweg esclarece: “Na teoria da peça didática, Brecht partiu do princípio de que, com a ajuda dos jogos teatrais que partem dos textos da peça didática, as experiências e conceitos sobre o mundo e a sociedade poderiam ser trabalhadas e aprofundadas de uma maneira que só o teatro possibilita” (STEINWEG, in. Koudela, 1992, p. 50).
Em Teoria da Pedagogia, texto fragmentário de 1930, Brecht discute a educação dos jovens para o Estado, ou melhor ainda, para um novo Estado, de caráter socialista. Ressalta que a educação ocorre a partir da relação entre a observação e a atuação, proporcionada pelo jogo teatral:
Entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não existe diferença. A partir desse reconhecimento, aparece a proposta do pensador para educar os jovens através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e espectadores, como é sugerido nas prescrições da pedagogia. O prazer de observar apenas é nocivo ao Estado, assim como o é o prazer da atuação apenas. Ao realizar, no jogo, ações que são submetidas à sua própria observação, os jovens são educados para o Estado. Esses jogos devem ser inventados ou executados de forma que o Estado tenha um proveito. Sobre o valor de uma frase ou de um gesto não decide portanto a beleza, mas sim se o Estado tem algum proveito quando os jogadores enunciam a frase, executam o gesto e entram em ação (BRECHT, apud. Koudela, 1991, p. 15).
No texto Vale a Pena Falar Sobre Teatro Amador?, Brecht constata a importância do jogo teatral na formação humana. Sua contribuição acontece principalmente através da imitação: “São processos teatrais que formam o caráter. O homem copia gestos, mímica, falas. E as lágrimas surgem do pesar mas também o pesar surge das lágrimas. O adulto não é diferente. Sua educação não pára nunca. Só os mortos não são transformados por seus iguais. Isso explica o significado do jogo teatral para a formação do caráter” (BRECHT, apud. Koudela, 1991, p. 20).
Brecht concebe as peças didáticas como tentativas pedagógicas de interferência social. Sua intenção, num sentido mais restrito, é combater a monopolização dos meios de produção artísticos, mas, num sentido mais amplo, é possibilitar as condições para a superação do Estado capitalista. No texto A Grande e a Pequena Pedagogia2 , o autor prevê duas formas de atuação da peça didática. Numa primeira fase, a pequena pedagogia pretende a democratização do teatro sem superar a divisão “atuantes/espectadores”. Na fase seguinte, a grande pedagogia propõe-se a superar esse sistema. A última fase
só conhece atuantes que são ao mesmo tempo estudiosos, a partir da lei fundamental... o jogo de imitação se torna uma das partes mais importantes da pedagogia... os atuantes serão formados, na medida do possível, a partir dos amadores... os atores profissionais e todo o aparato teatral precisam ser utilizados com o objetivo de enfraquecer as estruturas ideológicas burguesas. as peças e a forma de interpretação precisam transformar o espectador em homem de estado. por isso não devem apelar para o sentimento do espectador, o que lhe permitiria reagir esteticamente, mas sim para a sua razão. os atores devem estranhar personagens e processos para o espectador, de forma que chamem a sua atenção. o espectador precisa tomar partido em vez de se identificar. (BRECHT, apud. Koudela, 1991, p. 13)
Conforme Koudela, a peça didática permite a “alternância entre identificação e estranhamento3 ” quando os envolvidos podem ser, ao mesmo tempo, atuantes e observadores. Embora Brecht aconselhe o uso dos mesmos recursos de distanciamento do teatro épico para o teatro didático, Koudela indica a presença de uma outra forma de identificação neste último: “O sujeito da identificação não é o ator ou espectador mas sim aquele que realiza o experimento. Através do jogo de troca de papéis, ele assume a posição de observador de seus próprios atos”(KOUDELA, 1991, p. 105-106).
Assim, o jogo teatral, através das peças didáticas, desenvolve o autoconhecimento do “atuante/observador” e seu conhecimento do mundo: “Brecht parte do princípio de que o jogo teatral, orientado com base nos textos das peças didáticas, propicia a elaboração de experiências e acontecimentos sociais, sendo que as concepções sobre o mundo e a sociedade podem ser então aprofundadas de uma forma que só é possível mediante os elementos do teatro. A proposta para educar os jovens através do jogo teatral aponta para um caminho de autoconhecimento. O jogador atua para si mesmo e não para outrem. Atuar é ser espectador de si próprio. A peça didática ensina quando a gente é atuante e, ao mesmo tempo, espectador dos próprios atos” (KOUDELA, 1991, p. 164).
Dessa forma, a peça didática possibilita desencadear um processo de aprendizagem que resulta da relação que se estabelece entre o “modelo de ação” (o texto) e a atuação prática dos participantes. Porém, trata-se de um processo que não está completamente determinado pelo dramaturgo, uma vez que pressupõe a contribuição dos integrantes do grupo. Segundo Koudela, a principal finalidade da peça didática é a educação estético-política dos atuantes: “A peça didática não é uma cópia da realidade, mas sim um quadro (recorte), no sentido de representar uma metáfora da realidade social... O caráter estético do experimento com a peça didática é um pressuposto para os objetivos da aprendizagem” (KOUDELA, 1991, p. 110).
Texto de: Maristela Marasca
NOTAS
1 Alguns comentadores indicam a necessidade de considerar a diferença entre o caráter pedagógico e o caráter didático presente na obra de Brecht. Bornheim, por exemplo, afirma que praticamente toda a dramaturgia brechtiana é pedagógica na medida que está “sempre empenhada na crítica, em ensinar o homem a ver o mundo em que vive”. Enquanto que, o caráter didático, restringe-se a um determinado período de seu trabalho, quando o autor faz uma tentativa radical de criar um novo público para o teatro ou, em última instância, a própria supressão do público. Nessa fase, o teatro é reduzido a “uma técnica escolar que se serve do teatro para atingir seus objetivos” (BORNHEIM, 1992, p. 183).
Paolo Chiarini também compartilha dessa distinção. Para ele, o caráter pedagógico está presente na obra de Brecht através da “exigência de uma arte que busca fugir às solicitações místicas e aos engodos da retórica”. Em relação à peça didática, o autor adota uma postura crítica: elas são vistas como uma experiência que pretende fornecer modelos rígidos, explicitamente pedagógicos aos intérpretes. Enfim, um teatro “totalmente orientado e incapaz de criar ambigüidade, dúvidas, incertezas sobre as escolhas a fazer” (CHIARINI, 1967, p. 148 e 161).
2 O referido texto mantém a pontuação empregada pela tradutora e, originalmente, pelo autor.
3 A autora prefere utilizar o termo “estranhamento”, em vez de utilizar o termo “distanciamento” para a tradução de Verfremdung porque o primeiro “guarda o núcleo fremd que significa ‘estranho, estrangeiro’” (KOUDELA, 1991, p. 106 - nota de rodapé).
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_______________. Escritos Políticos. Caracas : Editorial Tiempo Nuevo, 1970, (Fuegos Cruzados).
_______________. Escritos Sobre Teatro. Buenos Aires : Nueva Visión, 1973, v. 1.
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______________ . Teatro Dialético. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1959.
BORNHEIM, Gerd. Brecht - A Estética do Teatro. Rio de Janeiro : Graal, 1992.
_______________. O Sentido e a Máscara. São Paulo : Perspectiva, 1975.
_______________. Teatro: A Cena Dividida. Porto Alegre : L & PM, 1983.
BOSI, Alfredo. Reflexões Sobre a Arte. 5. ed. São Paulo : Ática, 1995.
CHIARINI, Paolo. Bertolt Brecht. Teatro Hoje. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1967.
KOUDELA, Ingrid. D. Brecht - Um Jogo de Aprendizagem. São Paulo : Perspectiva/Edusp, 1991, (Estudos).
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VASCONCELOS, Luiz P. Dicionário de Teatro. 2. ed. Porto Alegre : L & PM, 1987.
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